Direito e cidadania/indignação e conhecimento
O ponto de partida deste projeto de pesquisa é uma noção ampla e crítica de direitos fundamentais e a sua relação com a cidadania. Para além da ideia de igualdade, acredita-se que os direitos fundamentais precisam ser considerados no contexto político-institucional em que foram sendo implementados no Brasil, para os grupos mais vulneráveis na sociedade (grupos étnico-raciais, crianças e adolescentes, gênero, pessoas com deficiência, refugiados etc.), o que não ocorreu por meio de um processo geracional de direitos, naturalmente evolutivo, mas sim, por meio de políticas públicas pensadas dentro do projeto burguês e excludente de modernização do país. Com isso, muitos grupos sociais e identitários foram reconhecidos como sujeitos de direito tardiamente, somente a partir da Constituição de 1988. Adjacente a este fato, desenvolveu-se uma sociedade desigual, com grupos sociais vivenciando uma cidadania extremamente fragilizada, sob um regime de direitos similarmente deficiente, quase inalcançáveis na sua efetividade.
Entender essas deficiências e como impactam o exercício de direitos para os grupos sociais estudados é um dos desafios principais do projeto, cuja materialidade recai sobre situações de injustiça social que ferem a dignidade humana. Essas situações estão relacionadas a projetos econômicos, sociais e institucionais excludentes, como são aqueles que privilegiam o mercado em detrimento dos sujeitos, com a imposição de compromissos mínimos dos Estados na prestação de direitos e serviços essenciais à sociedade, ignorando a necessidade de fortalecimento e a emancipação econômica e de direitos das pessoas mais necessitadas, portanto, com baixa proteção social.
Um segundo desafio está em compreender que esta desigualdade na efetivação de direitos não se restringe às questões de desigualdades sociais e pobreza, ou outras injustiças sociais resultantes das políticas neoliberais, mas alcança uma outra modalidade de injustiça, a cognitiva, que se constrói por meio de uma epistemologia dominante, a qual tenta deixar nos grupos afastados ou rejeitados dos grandes centros do conhecimento científico, a presença da dominação epistêmica. Por meio desta, os conhecimentos desses grupos são desqualificados e eles passam a pensar a partir da perspectiva do modelo dominante e opressor, e não mais a partir do seu contexto existencial, social e político, que lhes permitiu compreender o mundo e comunicá-lo, por meio de outras práticas, relações e interações não dominantes. Relacionar as injustiças sociais às injustiças cognitivas não significa forçar uma unidade entre dois tipos de saberes diferentes, como se fossem a mesma coisa, mas reconhecer as limitações das estruturas teóricas de cada uma quando explicam, de modo autônomo e isolado, a realidade de opressão dos grupos sociais e sua relação com o Direito, em particular, as teorias sobre injustiças sociais que se posicionam a partir da modernidade sem referência alguma à colonialidade. Por isso, faz-se necessário que essas duas estruturas teóricas sejam pensadas de modo interdependente e, até mesmo, complementar.
Desse modo, o projeto propõe o conhecimento de outros referenciais epistemológicos, notadamente relacionados às epistemologias do sul, ou às teorias decoloniais, para reinterpretar essas realidades jurídicas e sociais, partindo de uma indignação epistêmica. Dar voz a esses grupos e pensá-los como agentes participantes e transformadores da sociedade e da ordem jurídica em que se inserem constitui um importante núcleo de preocupações dos pesquisadores que participam deste projeto, e que implica no conhecimento de metodologias participativas e pedagogias emancipatórias, tanto para os sujeitos pesquisadores (epistêmicos) quanto para os sujeitos investigados.
Como objetivo principal, pode ser destacada a busca pela compreensão interdisciplinar e aprofundada da base existencial de um sistema epistemológico, social, histórico e cultural que impactam a distribuição e efetivação de direitos e comprometem a cidadania desses grupos sociais referidos. Neste sentido, os trabalhos resultantes deste projeto (artigos, livros, dissertações e teses) acabam por enfatizar diferentes aspectos que se unem por meio deste problema comum. Esses produtos contribuem para um regime de conscientização mais amplo sobre os direitos fundamentais desses grupos sociais, com repercussão e, muitas vezes, impacto transformador das políticas públicas pertinentes, quer sejam locais ou nacionais. Portanto, a metodologia utilizada traz, na maioria das pesquisas, o modelo participativo que se propõe a transformar a pesquisa em ação. Além disso, parte da premissa de que há uma indignação manifesta nos movimentos sociais que lutam contra as injustiças sociais e cognitivas, sofridas por esses grupos, e, a partir dela, muitos conhecimentos, incluindo direitos, são construídos como forma de resistência e conjugados com a academia a fim de serem reinterpretados e ganharem um novo sentido para a luta pela transformação dessa realidade.
O projeto desenvolve-se com várias parcerias internacionais, nacionais e regionais, e busca disseminar seus resultados por meio de publicações, organização de eventos acadêmicos e trabalhos sócioacadêmicos, estes realizados, diretamente, com os grupos sociais investigados, com o intuito de viabilizar instrumentos de acesso às suas questões sociojurídicas mais importantes e urgentes. No CNPq, o projeto cadastrado subdivide-se em duas linhas principais de pesquisa: sob a coordenação da Professora Raquel Coelho de Freitas:
1) Indignação e Conhecimento: para sentir-pensar o Direito e a Cidadania – Grupo INDIGNA, com a predominância dos seguintes temas: – Direito à Educação e Educação para as Relações Étnico-Raciais e Interculturalidade; – Direitos da Criança e do Adolescente; – Diversidade cultural e direitos dos povos indígenas; – Direitos socioambientais e justiça ambiental no Brasil; Indignação Epistêmica: bases existenciais de validação do conhecimento. Algumas publicações importantes destas pesquisas foram: Direito das Minorias(2018), Indignação e Conhecimento: para pensar-sentir o Direito das Minorias (2020), Indignação epistêmica e decolonização do conceito de minorias (2022), Epistemic indignation and decolonization of the concept of minorities(2022), Descolonização de Estudos das Vulnerabilidades na área da Infância(crianças e adolescentes em situação de rua, adoção, institucionalização, crimes sexuais contra crianças etc.); – Combate ao Trabalho Infantil; – Justiça Restaurativa; – Medidas Socioeducativas e Socioeducação. Conceitos Sociojuridicos (2022).
2) Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça – NUDIJUS, com pesquisa e intervenção na área da infância, com as pesquisas voltadas para os seguintes temas: – A proeminência na socioeducação é a responsabilização juvenil, analisada sob uma perspectiva jurídica que, por vezes, não se resume à visão que os juristas têm desse regime de responsabilidades, mas da visão que os próprios jovens têm do sistema, dialogada por meio das artes. Desses estudos resultaram produtos como a obra Liberta(2019), Juventudes, Linguagens e Direitos(2019), Direito e Resistência(2019), A Luta pela Proteção Integral, O Ato Infracional (2023), Recomece(2023), e outros. A Justiça Restaurativa inaugura um campo teórico e empírico de pesquisas na socioeducação, e tem sido realizada junto ao Sistema de Justiça em vários estados brasileiros, com maior concentração, no Estado do Ceará. Os eventos do NUDIJUS contam com parceiros das Nações Unidas – Comissão dos Direitos da Criança, Terre des Hommes, Rede Radic, Rede Mundial de Proteção dos Direitos da Criança, Unicef, Universidad de Málaga, Universidad Jaume I, Rede Peteca, CEDECA, Fórum DCA, Funci, Governo do Estado do Ceará, UFC e IES brasileiras.